Artigo: O sucesso da música erudita
(publicado em newsletter de 1999)
Assistindo ao filme Farinelli, há poucos anos, fiquei impressionado com a representação do comportamento da platéia em concertos eruditos no século XVIII. Não havia cadeiras e o público parecia compor-se de bêbados animadíssimos ou, no mínimo, de indivíduos natural e irrestritamente barulhentos. Era algo análogo ao que vemos hoje em shows de rock.
Hoje a exigência convencional é um silêncio absoluto. Se você já foi a um ou outro concerto, sabe que será duramente recriminado se aplaudir antes do fim da peça em execução, o que inclui os próprios intervalos entre movimentos, que também devem ser guardados com contenção.
Não como historiador de música, mas no mínimo como seu admirador de muitas "músicas" sei que esse confronto se presta pelo menos a uma especulação: não fica a difusão da música erudita prejudicada por esse padrão de intolerância?
Várias vezes ouvi aplausos em intervalo de movimentos. Se você pensar bem, há de ver que é um aplauso no silêncio. O sujeito, desprevenido, respeitou o som que ouviu: encerrada a seqüência, manifestou seu contentamento; não aplaudiu por conveniência, uma vez que aplaudiu sozinho, mas por alegria e reconhecimento. Por ser desprevenido, não é difícil que estivesse em sua primeira presença em platéia de concerto. O que ele pode pensar? "Sou interessado, mas acabei de ser desrespeitado: emocionei-me com a peça, manifestei isso sem interromper o som e fui recriminado. Por que voltaria aqui?"
Sem estar comparando a música que é feita em cada caso, afirmo que sempre vi com imensa simpatia aquelas faixas de música popular gravadas ao vivo em que uma breve salva de palmas saúda a canção logo em seu início, logo no momento da satisfação que o reconhecimento gera.
No Brasil, o elitismo da música erudita (que dá suporte à intolerância descrita) é um fato incontestável. Nossas poucas platéias são formadas pelos próprios músicos que têm quase obrigação de acompanhar os eventos ; por colunáveis mais preocupados com a visibilidade social, e por uns poucos aficionados, regulares ou esporádicos (entre os quais me incluo entre os esporádicos). À vista da exibição de vestimentas requintadas no saguão da Sala Cultura Artística, tradicional catedral paulistana da música erudita internacional, pode-se optar por, num momento de sede, tomar água Perrier ou água Perrier. Gente chique tem de tomar água engarrafada na Europa, a despeito da abundância de nossas fontes afinal, é o que se toma na Europa!
É uma pena que o verso dessa moeda seja, não propriamente uma "música", mas um conjunto pouco variado de sons cuja sorte é dada pelo desempenho de dançarinos e por letras engraçadinhas habilmente indecentes.
Entre a arrogância costumeira que envolve o Verdadeiro Belo, e o ganancioso aproveitamento de modismos rasteiros, onde viveremos?
Ainda a respeito da difusão de música erudita, pode perguntar um apreciador das artes um apreciador dos criadores originais, como os que sempre povoaram todas as expressões: por que, antigamente, os compositores eram as grandes estrelas da música erudita, criando e executando, enquanto hoje essas estrelas são, fundamentalmente, os intérpretes de composições antigas e em geral consagradas?