Palestra
Jundiaí, 22/02/2005
(Associação Cultural ReligArte)
(trecho)
Alguns artistas costumam dizer que gostam de agredir o seu público. Eu entendo perfeitamente o que eles querem dizer. Mas alguns artistas que dizem isso não entendem bem o que estão dizendo.
"Agredir" o público de certa forma é, também, uma tradição. Eu gosto dessa tradição. Confesso que meu interesse também é agredir o público, portanto posso falar sobre isso com algum conhecimento de causa. O problema aqui é que existem duas formas de agredir o público, e eu não admito que uma seja tomada pela outra.
Vou ser bem direto: uma forma de agredir o público é verdadeira; a outra é falsa. A verdadeira é a agressão perturbadora. Você não dá um bofetão na cara do público: você o obriga a dar um bofetão em sua própria cara. A agressão falsa tem apenas uma aparência de agressão. É violenta e não provoca nada além de pura indignação. Costuma ser mais catártica para quem faz.
A Retórica explica a diferença. Se você faz uma obra e diz que tem a intenção de "mostrar a hipocrisia burguesa da sociedade atual", precisa se perguntar: qual o seu público? Primeira pergunta: você precisa mostrar a hipocrisia da sociedade para uma pessoa que já conhece essa hipocrisia, que já sabe que ela existe? Não. (Vamos deixar bem claro o raciocínio aqui: eu não acho que uma obra seja feita exclusivamente de sua "mensagem". Mas se você faz qualquer coisa, ainda que seja uma única cena, com a intenção de passar uma mensagem, então você é obrigado a entender as ferramentas utilizadas na transmissão de uma mensagem. Você não escreve uma carta para a namorada e envia para o seu bisavô.) Não, você não precisa mostrar. Claro que você pode fazer uma obra para as pessoas que pensam como você, mas então perde-se a tal idéia de "agressão": você está num culto, comungando idéias com pessoas semelhantes a você. Para manter a idéia de agressão, a idéia de que você vai efetivamente perturbar a alguém, seu público deve ser de pessoas que não pensam como você. São pessoas que, essas sim, talvez precisem ser alertadas para a tal "hipocrisia da sociedade burguesa".
Então chegamos a uma bifurcação: ou você pretende afrontar as pessoas, ou você pretende melhorá-las. Se você pretende afrontar as pessoas, a escolha é sua, mas eu não posso fazer nada por você. Mas lembre-se de que uma câmara de tortura nazista é exatamente isto: um lugar em que você pode agredir pessoas sem o interesse em melhorá-las, apenas com o desejo sádico de agredi-las, afrontando-as por pensar de um modo diferente de você.
Se você não é um nazista, você ainda pode querer agredir as pessoas do modo como eu gosto de fazer, sem afrontá-las, sem atingi-las fisicamente, apenas tentando fazê-las melhorar (o que sempre significa uma tentativa de melhorar a si próprio). Bem, é evidente que você não vai melhorar uma pessoa que se sente insultada a ponto de abandonar um livro na primeira página, ou sair do teatro ou do cinema antes da metade da apresentação. A única coisa que você fez foi afastar essa pessoa.
Eu não tenho como dizer quais são as maneiras de agredir a pessoa com a intenção de melhorá-las. Cada um tem as suas ferramentas, e a criatividade e o trabalho podem produzir muita coisa. Mas eu conheço uma história bíblica que para mim é uma espécie de lema. Para mim, é uma protoagressão artística. A história é a seguinte, em resumo. Sucedeu que Davi viu uma bela mulher, que era esposa do pobre Urias. Desejou-a e, por isso, conseguiu enviar Urias para a frente de batalha, onde pereceu desassistido. Então Natan foi a Davi e contou-lhe a seguinte história:
Havia numa cidade dois homens, um rico e outro pobre.
2 O rico tinha rebanhos e manadas em grande número;
3 mas o pobre não tinha coisa alguma, senão uma pequena
cordeira que comprara e criara; ela crescera em companhia dele e
de seus filhos; do seu bocado comia, do seu copo bebia, e dormia
em seu regaço; e ele a tinha como filha.
4 Chegou um viajante à casa do rico; e este, não querendo
tomar das suas ovelhas e do seu gado para guisar para o viajante
que viera a ele, tomou a cordeira do pobre e a preparou para o seu
hóspede.
5 Então a ira de Davi se acendeu em grande maneira contra
aquele homem; e disse a Natã: Vive o Senhor, que digno de
morte é o homem que fez isso.
6 Pela cordeira restituirá o quádruplo, porque fez
tal coisa, e não teve compaixão.
7 Então disse Natã a Davi: Esse homem és tu!
Assim diz o Senhor Deus de Israel: Eu te ungi rei sobre Israel,
livrei-te da mão de Saul,
8 e te dei a casa de teu senhor, e as mulheres de teu senhor em
teu seio; também te dei a casa de Israel e de Judá.
E se isso fosse pouco, te acrescentaria outro tanto.
9 Por que desprezaste a palavra do Senhor, fazendo o mal diante
de seus olhos? A Urias, o heteu, mataste à espada, e a sua
mulher tomaste para ser tua mulher; sim, a ele mataste com a espada
dos amonitas. (2 Samuel, cap. 12, vers. 1-9)
O sábio Natan utilizou a retórica para fazer com que o próprio Davi se incriminasse pelo que cometeu. Criou uma história análoga, tomando cuidado para que Davi não reconhecesse de imediato que sua própria ação era análoga àquela que lhe causou tanta repulsa. Depois da identificação, Davi não tinha mais como voltar atrás, era obrigado a admitir que tinha agido mal. Ora, essa estratégia retórica é muito mais eficiente do que a acusação direta. Seria mais demorado, ou talvez impossível, convencer Davi com uma acusação direta. Ele iria agir como todas as pessoas: ia tentar se justificar, ia dizer que mandar aquele homem para a guerra era uma atitude normal de um rei como ele, uma atribuição louvável, ia dizer que a mulher tinha sido acolhida depois da morte do marido, em vez de ter ficado desamparada, o que é verdade, ou seja, ia encontrar desculpas.
Existe uma história interessante, se não me engano em um texto do Diderot. Ele comenta que viu um senhor na platéia do teatro, assistindo a uma peça, e que esse senhor estava bufando de indignação pelos atos que o vilão da peça estava praticando. Mas era sabido que esse mesmo senhor, na vida real, praticava aquelas mesmas ações! Como isso podia acontecer? É claro que o espectador não via a si próprio como malvado. Por quê? Porque a obra no palco está organizada para mostrar que aquelas atitudes são erradas. Mas, do ponto de vista de uma pessoa, suas ações são sempre justificadas de algum jeito. Para a pessoa, ela sempre tem um motivo que justifique suas ações. E o Davi, naquela história bíblica, também teria, se ele não tivesse admitido o próprio erro antes. Com a estratégia do sábio, ele foi levado a admitir a culpa sem saber que estava fazendo isso.
É claro que não dá para usar a mesma ferramenta sempre, não é esse o caso.
Mas nada acontece por acaso. Você precisa da técnica. Eu gosto do seguinte trecho do Plínio Marcos: "A técnica é uma coisa mecânica. Disso ninguém duvida. Mas o artista, por mais sensível que seja, não pode dispensá-la. Precisa apurar a técnica com muito treino, até incorporá-la totalmente, até poder usá-la de forma que ninguém perceba que ele tem técnica." Este é o "pulo do gato". Você vê um bom artista e nem parece que ele tem técnica. Mas ele tem, tem tanta que já se tornou orgânica.
Posso completar isso com um trecho de Michelangelo: "As obras realizadas à custa de muito trabalho devem parecer, a despeito da verdade, fáceis e concebidas sem esforço. (...) A grande regra é penar muito para se criarem coisas que pareçam não ter custado nenhuma pena."
E é isso que nós, eternos aprendizes e aspirantes à arte da escrita, devemos sempre procurar.