Conheci
Paula Chagas em 1999, quando juntos entramos no Círculo de Dramaturgia
do CPT do SESC. Seis anos mais nova que hoje, já impressionava a
todos por sua personalidade. Cheguei a dizer-lhe várias vezes que
sempre gostei de debater com ela os assuntos em que temos posições
conflitantes (não são poucos!), pois sua oposição de idéias é muito
estimulante. Tivemos diversos desses exercícios de lealdade e dialética.
Pude
acompanhar de perto o quanto ela soube aproveitar os três anos em
que esteve no CPT, não somente pelos ensinamentos valiosos de Antunes
Filho, mas por sua própria disposição para a pesquisa séria e o
trabalho intenso de criação.
Não
é de surpreender que ela tenha prosseguido ativamente com sua dramaturgia
mesmo quando precisou sair do CPT. Muito além do seu trabalho de
jornalismo cultural, já fez seus textos passarem por leituras dramáticas,
publicou em conjunto com outros dramaturgos e também transformou
peças em espetáculos.
Um
exemplo é a sua obra “Galeria”, que cheguei a assistir, já a tendo
conhecido no papel. Foi realizada precisamente numa galeria de arte
de São Paulo e mostrava a discussão de um antigo casal — temática
que se intensifica no texto que publica neste volume.
Essa
pode ser uma comparação significativa. “Galeria” era um diálogo
maduro; longo, mas constantemente humano e cativante. “A degola”,
porém, atinge um nível formal de sofisticação maior.
Como
o leitor poderá ver (espero fazer comentários que não estraguem
o prazer da leitura), a relação entre os dois personagens se esparrama
em tempos estranhos. Parece acentuar que os relacionamentos estão
condenados aos mesmos vícios. À mesma sufocação. O tempo retrocede,
mas parece avançar para o espectador (ou seria o contrário?). Nessa
manipulação, o destaque é a última das quatro cenas, de cronologia
mais difusa e desfecho impactante.
Mas
o dado mais agressivo da dramaturgia desse texto não é essa depuração
formal, e sim a camada implícita de aspectos sociais. Os personagens
são de “classes” diferentes — e “classes” em vários sentidos. Parecem
peças de quebra-cabeças que não se encaixam, mas que tentamos juntar
a marteladas. As arestas soltam faíscas.
Por
estilo, opção ou por decorrência de um constante processo de crescimento
e aprendizado, a autora, em minha opinião, não se preocupa em fazer
dos diálogos mais uma marca de contundência da obra. Utiliza frases
não musicais, quase improvisadas, como se ela fosse diretora e também
atriz das falas que escreveu. Acredito que um bom encenador, cuja
sensibilidade vibre por essa mesma sintaxe, deverá criar, a partir
desta peça, um espetáculo de um naturalismo chocante, que trará
ainda mais luz a seus complexos questionamentos sobre os sentimentos
e os papéis sociais.
(Como
é bom ver uma obra em que a técnica cuidadosa aparece a serviço
das sensações, num universo em que estas — coitadas — costumam vir
às letras tão pobres e desamparadas!...)
Com
ousadia por trás de um projeto inteligente, a jovem Paula Chagas
trabalha sério para se inscrever nessa busca ansiosa por uma nova
dramaturgia brasileira. Mas vai além da “novidade”. É dramaturgia
que, por sua consistência sem concessões à mediocridade, promete
permanecer além das vicissitudes, além do imediatismo, além do seu
tempo.