Prefácio: peça "A degola"
(publicado no livro Cia dos Dramaturgos - vol. 1, 2005)

Conheci Paula Chagas em 1999, quando juntos entramos no Círculo de Dramaturgia do CPT do SESC. Seis anos mais nova que hoje, já impressionava a todos por sua personalidade. Cheguei a dizer-lhe várias vezes que sempre gostei de debater com ela os assuntos em que temos posições conflitantes (não são poucos!), pois sua oposição de idéias é muito estimulante. Tivemos diversos desses exercícios de lealdade e dialética.

Pude acompanhar de perto o quanto ela soube aproveitar os três anos em que esteve no CPT, não somente pelos ensinamentos valiosos de Antunes Filho, mas por sua própria disposição para a pesquisa séria e o trabalho intenso de criação.

Não é de surpreender que ela tenha prosseguido ativamente com sua dramaturgia mesmo quando precisou sair do CPT. Muito além do seu trabalho de jornalismo cultural, já fez seus textos passarem por leituras dramáticas, publicou em conjunto com outros dramaturgos e também transformou peças em espetáculos.

Um exemplo é a sua obra “Galeria”, que cheguei a assistir, já a tendo conhecido no papel. Foi realizada precisamente numa galeria de arte de São Paulo e mostrava a discussão de um antigo casal — temática que se intensifica no texto que publica neste volume.

Essa pode ser uma comparação significativa. “Galeria” era um diálogo maduro; longo, mas constantemente humano e cativante. “A degola”, porém, atinge um nível formal de sofisticação maior.

Como o leitor poderá ver (espero fazer comentários que não estraguem o prazer da leitura), a relação entre os dois personagens se esparrama em tempos estranhos. Parece acentuar que os relacionamentos estão condenados aos mesmos vícios. À mesma sufocação. O tempo retrocede, mas parece avançar para o espectador (ou seria o contrário?). Nessa manipulação, o destaque é a última das quatro cenas, de cronologia mais difusa e desfecho impactante.

Mas o dado mais agressivo da dramaturgia desse texto não é essa depuração formal, e sim a camada implícita de aspectos sociais. Os personagens são de “classes” diferentes — e “classes” em vários sentidos. Parecem peças de quebra-cabeças que não se encaixam, mas que tentamos juntar a marteladas. As arestas soltam faíscas.

Por estilo, opção ou por decorrência de um constante processo de crescimento e aprendizado, a autora, em minha opinião, não se preocupa em fazer dos diálogos mais uma marca de contundência da obra. Utiliza frases não musicais, quase improvisadas, como se ela fosse diretora e também atriz das falas que escreveu. Acredito que um bom encenador, cuja sensibilidade vibre por essa mesma sintaxe, deverá criar, a partir desta peça, um espetáculo de um naturalismo chocante, que trará ainda mais luz a seus complexos questionamentos sobre os sentimentos e os papéis sociais.

(Como é bom ver uma obra em que a técnica cuidadosa aparece a serviço das sensações, num universo em que estas — coitadas — costumam vir às letras tão pobres e desamparadas!...)

Com ousadia por trás de um projeto inteligente, a jovem Paula Chagas trabalha sério para se inscrever nessa busca ansiosa por uma nova dramaturgia brasileira. Mas vai além da “novidade”. É dramaturgia que, por sua consistência sem concessões à mediocridade, promete permanecer além das vicissitudes, além do imediatismo, além do seu tempo.