Resenha: "Um diálogo vazio entre mulheres de Heidegger"
(publicado em O Estado de S. Paulo, em 20 de agosto de 2000)

Martin Heidegger elaborou seu pensamento filosófico e tornou-se um homem célebre. Enquanto isso, envolveu-se com Hannah Arendt e com o nazismo.

A escritora francesa Catherine Clément tenta transformar essas histórias em romance no recém-lançado Martin e Hannah (Companhia das Letras, 333 págs., R$ 28,00). Mostra a participação ingênua de Heidegger no 3º Reich - até mesmo carregando um incômodo fuzil, nos estertores da Alemanha durante a 2ª Guerra - e seu caso adúltero com a aluna judia e futura filósofa.

Hannah e Elfride Heidegger, velhas em 1975, já se conheciam pessoalmente, e a mulher legítima do filósofo sabia do caso extraconjugal do marido.

Heidegger está bastante doente na sua casa em Freiburg (menos de um ano antes de morrer), e Elfride recebe a visita da "rival" para conversar sobre a vida. Breves capítulos intercalam essa conversa, registrando flagrantes da história dos três personagens. Esse encontro casualmente pacífico é mencionado na biografia de Hannah Arendt, que acabou inspirando o livro de Catherine Clément. Mas a autora imagina que, para realizar um bom romance, bastam a presença de dois vultos da filosofia universal e a situação intrigante - tramas amorosas e políticas tão reais.

É verdade que, em alguns pontos, a temática sustenta o interesse pela obra, especialmente no que diz respeito ao massacre dos judeus na 2ª Guerra (esse assunto inesgotável): a ignorância de Martin, a colaboração de sua esposa, o padecimento de Hannah, o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Nesse sentido, uma das cenas mais incisivas é a figuração de um diálogo entre Hannah Arendt e Golda Meir: as duas se dizem atéias, mas a segunda cobra da primeira uma espécie de apaixonada "crença no povo judeu", e vai alinhando frases belicosas que lembram a Arendt o discurso do nazismo antes da guerra. Também são marcantes outros episódios fundamentais, como as perturbadas recordações que Hannah tem dos cossacos e do pogrom, ou sua estupefação ante o nazista que, julgado, alegou ter baseado suas atitudes na moral de Kant.


Equívoco - Mas o interesse pelo livro não vai além desses momentos isolados. A realização da obra é um equívoco literário. Os diálogos são óbvios e construídos artificialmente - ora para gerar algum efeito previsível, ora para transmitir informações de maneira pretensamente casual. O romance não ocorre: quase tudo são explicações descritivas, que mal tangenciam ações "dramáticas" esporádicas. A autora poderia muito bem ter optado por fazer uma dissertação biográfica, na qual discorreria seus conhecimentos sobre os protagonistas sem sofrer tentando transformar tudo em um romance empolgante - o que ficou longe de acontecer.

Está no diálogo principal o equívoco mais evidente. Hannah e Elfride estão discutindo com vivacidade, mas a autora insistentemente julga útil informar ao leitor que está havendo uma "guerra" entre elas. Quando quer, por exemplo, que uma delas diga aquilo que obviamente já deve ter dito uma ou muitas vezes em outras oportunidades - o que tornaria na verdade a fala improvável - a autora acredita escapar do problema fazendo-a completar: "Já disse isso inúmeras vezes!" - um recurso amadorístico para contornar esse tipo de situação. E esse imenso diálogo, cujo conteúdo parece todo o tempo ser compartilhado pelas interlocutoras, estende-se ao longo do romance inteiro. Talvez por isso a autora teime em informar que há guerra numa situação em que a luta é falsa, forjada para dar a aparência de rixa entre velhotas ressentidas.

As informações biográficas dos personagens, obtidas em trabalho de pesquisa, foram enfiadas numa estrutura forçada e, por isso, a obra não chega a ter o sabor de um romance. É pura informação, travestida de diálogos impossíveis ou de relatos do passado, que fornecem dados preciosos sobre as figuras, mas mostram o caráter mais explicativo do que narrativo, mais biográfico que romanesco: "Hannah seguiu o itinerário de Rosa (Luxemburgo), sua paixão pelas ciências naturais, pelas plantas, os pássaros, sua entrada na Internacional socialista, os discursos, os artigos, as prisões. Sua piedade para com as companheiras de luta, o ardor do seu olhar. Rosa tinha se tornado para Hannah a irmã ideal." Esse é o tom do texto de Clément.

A não ser por alguns lampejos de sensibilidade e inteligência, o livro é raso mesmo quando se refere à filosofia. Tenta ser lírico na menção dos enlevos amorosos, tenta ser moderno ou delicadamente picante na descrição passageira de lances sexuais, mas não faz jus à profundidade das figuras apresentadas.

Disputa - O pensamento filosófico de Hannah chega a ficar obscurecido, ao contrário do que ocorre com o de Heidegger - ela e Elfride parecem, em quase todo o livro, apenas mulheres a disputar Martin.

Aliás, como a narrativa é feita basicamente pelo ponto de vista das mulheres, gera-se um constrangedor endeusamento do homem Heidegger - tratamento que seria naturalmente repudiado por qualquer artista ou pensador de verdade. Quando ele dorme, não sonha: passeia de braços dados com mitos imortais; não fica deprimido, mas sim "habitado pela estranha ameaça do divino"; não é uma pessoa sedutora, é "um trem de partida tendo Hannah como passageira, com destino a lugar nenhum".

"Ele foi o primeiro; ele, o começo."

O ponto alto do livro é o conjunto de breves observações sobre os movimentos políticos que relacionaram os protagonistas - a Primeira Guerra, a ascensão de Hitler, a 2ª Guerra, a Alemanha arruinada. Mas é uma curiosidade passageira. A envergadura dos personagens requeria maior apuro literário.