O
programa da peça O canto de Gregório é, em suas
32 páginas, um espetáculo à parte. Vendido por um valor
simbólico na entrada e na saída das sessões, foi criado
por Ricardo Muniz Fernandes a partir de textos de referência propostos
pelo diretor e pelo autor da peça.
As Notas e fragmentos literários à margem de uma possível
encenação de O canto de Gregório traz textos
selecionados por Antunes Filho, de autores como Kafka, Camus, Jung e Dostoieviski,
entre outros.
Veja abaixo algumas das Notas e fragmentos à margem da escritura
de O canto de Gregório, que inclui dois textos selecionados
por Paulo Santoro e sua apresentação da peça para o espectador.
Caro
espectador, não estou aqui para levá-lo a paralisia alguma.
Para inspirá-lo tragicamente. Não. A vida é, a seu modo,
saborosa. Temos a felicidade de não nos mantermos presos o tempo todo
em nosso quarto às vezes frio e assustador, questionando os mitos que
regem nossa alma. Sempre podemos nos levantar e sair desse quarto, como talvez
fizesse Gregório, um minuto depois do fim da peça. Fingimos
dissipar o sofrimento essencial do homem, e somos felizes agindo assim.
Mas, no caos deste mundo, a lógica meticulosa não é apenas
uma coleção de frases ocas lançadas ao vento. Certamente
não será Gregório a única pessoa a necessitar
dessa lógica - ainda que a cura possa ser mais devastadora que a doença.
Se uma pessoa, afinal, disser a você que "cada um tem a sua verdade",
acredite nela: essa frase é a verdade que ela tem.
Perdidos que estamos todos nesta biblioteca infinita de Babel, resta-nos saber
apenas isto: afirmar é vão. E certo livro escondido num
daqueles hexágonos de Borges há de contar esta história,
esta deste instante, em que você mesmo, agudo espectador, é flagrado
na vaidade de afirmar que é vão afirmar que afirmar é
vão.
Paulo Santoro
A
criança logo se dá conta de que o choro sentido, qualquer que
seja a sua causa, é muito mais eficaz em seus efeitos do que o choro
superficialmente fingido. Mas há um momento no choro fingido, isto
é, na mímica do sentimento não vivido, a partir do qual
as emoções correspondentes ao choro sentido afloram e tomam
conta de fato da mente da criança. Nasceu o auto-engano.
O enganador auto-enganado, convencido sinceramente de seu próprio engano,
é uma máquina de enganar mais habilidosa e competente em sua
arte do que o enganador frio e calculista. Qualquer deslize pode ser fatal.
Para que sua mente não seja lida e decifrada pelos demais - para que
ela não escorregue em lapsos ou se entregue nas entrelinhas, com todas
as conseqüências danosas que isso acarretaria - o enganador embarca
em suas próprias mentiras, deixa-se levar de modo gradual e crescente
por elas e, enfim, passa a acreditar nelas com toda a inocência e boa-fé
deste mundo. Ele não desperta dúvidas porque não as tem;
duvidar agora, quem há de?
Eduardo Giannetti, Auto-engano
(Companhia das Letras)
Fundar
a moral não é fixar os seus princípios, mas estabelecer
sua legitimidade possível. Dizer em nome de que ela se justifica, de
uma maneira que não seja como mandamento de Deus ou pela sua utilidade
social.
Essa questão tomou forma completamente na Europa durante o século
XVIII: depois que os filósofos das Luzes libertaram a moral de sua
tutela metafísico-religiosa, e antes que os mestres da suspeita, com
Nietzsche à sua frente, tivessem empreendido, ao contrário,
destruir a sua razão de ser. A partir de então, não se
ousa mais considerá-la de frente, em sua rigidez escolar - pois se
descobriu que ela era por demais turva e ingênua - mas também
não se consegue livrar-se dela. Não negamos que temos uma consciência
moral, mas temos medo da mistificação. Tendo se tornado imprecisa,
vaga, solta no ar, sua idéia não cessa contudo de perseguir,
como um fantasma, os nossos debates ideológicos: o "humanitário",
a "solidariedade" que estão sempre em nossa boca hoje em
dia, com efeito, sobre que repousam?
François Jullien, Fundar
a moral (Editora Discurso Editorial)

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